Em algum domingo de 1997, após um almoço de família, minha falecida avó Luíza sentou-se pela primeira, e provavelmente única, vez à frente de um computador. Ela tinha 83 anos. O meu incrível Pentium 200, hoje uma peça digna de um museu de tecnologia, havia sido fruto de uma complexa negociação de meu pai, que à época vendia casas pré-fabricadas. Já fazia alguns anos que eu tinha contato com informática na escola, mas ter um computador em casa era algo que beirava o luxo. Minha avó olhou para a tela brilhante, e seus olhos pequenos se apertaram ainda mais por trás dos óculos, na tentativa de compreender aquele mundo novo. Então, pus um CD-ROM que havia ganho não lembro de quem e que contava com centenas de fotos de paisagens ao redor do mundo, além de alguns vídeos de pontos turísticos famosos. Mostrei a ela que, clicando com o mouse em cima dos “arquivos”, a gente conseguia ver a imagem ou o vídeo que quisesse. Ela questionou:
- E tudo isso está dentro daquela coisa redonda brilhosa com um furo no meio?
- Sim. É como se fosse um vinil, só que guarda muito mais coisas além de músicas – eu respondi, sentindo-me um profeta dos novos tempos.
- Eu me lembro quando fui ao cinema pela primeira vez e vi aquele monte de foto se mexendo, no Cine Rosário. Hoje, parece que até o cinema está dentro dessa coisa aí – completou ela.
Ficamos ali por mais algum tempo, olhando imagens da Muralha da China, de Manhattan, do Coliseu, vendo pequenos clipes de Veneza, do pôr do sol no Egito, de animais correndo na savana, entre inúmeros outros registros. Dona Luiza estava fascinada. Dois anos depois, ela faleceu.
Foto se mexendo... essa percepção tem mais verdade do que à primeira vista se pode supor. No século XIX, a fotografia era entendida como um espelho do real. Acreditava-se que conseguia captar a realidade e guardá-la em um pedaço de papel. Dessa forma, era compreendida menos como arte e mais como tecnologia. À pintura era resguardado o status de arte. Dessa forma, o cinema surge para além de uma grande inovação tecnológica, mas sobretudo como uma incrível ferramenta de se apreender e representar o real também incorporando o movimento, algo que a fotografia não possibilitava.
Em novembro de 1896, Georges Renouoleau – um dos tantos empresários viajantes que cruzaram o país mostrando a novidade nas principais cidades – usando o seu “Scinematographo” ou “Animatographo modelo francês” exibiu na Rua dos Andradas, n° 230, as seguintes “vistas animadas”, como eram chamados os filmes: O carroção, Uma criança brincando com cachorros e Exercícios de equitação por militares. Infelizmente nenhum desses registros chegou até nós. Logo em seguida, o cinema se expandiu e seu consolidou em Porto Alegre. Os principais locais de exibição eram o Theatro São Pedro (fundado em 1858), o Theatro Polytheama (fundado em 1898 e localizado na Praça Pinto Bandeira, esquina com a Voluntários da Pátria) e o Teatro Parque (localizado na Redenção, perto da Escola de Engenharia). Inúmeras companhias que passavam por Porto Alegre também faziam suas projeções no interior do estado. Era uma época em que o cinema era ambulante. A primeira sala fixa em Porto Alegre foi inaugurada em 1908. Tratava-se da “Recreio Ideal”, ficava localizada na Rua dos Andradas, nº 321, próxima à Praça da Alfândega, e tinha capacidade para 135 pessoas. Foi por meio dela que o cinema se profissionalizou em Porto Alegre e entrou de vez na rotina dos moradores da capital. Não demorou para que outros estabelecimentos surgissem. Ainda no mesmo ano, inúmeros outros empreendimentos surgiram à luz, como o Recreio Familiar, Rio Branco, Berlim, Varleté e Variedades. Vale salientar que todos eles se localizavam no centro de Porto Alegre, mais especificamente no entorno da Praça da Alfândega. Nos próximos dois anos, outros locais ainda abririam: Smart-Salão, Odeon, Royal e Colyseu. Todos no Centro Histórico de Porto Alegre.
Recreio Ideal em 1914. Acervo Ronaldo Bastos
O cinema já estava consolidado, portanto, como uma grande forma de diversão. É claro, no entanto, que as diferenças entre os filmes dos anos 1910 e os de hoje são brutais. Em primeiro lugar, ainda estávamos longe da popularização dos filmes coloridos, que só viria a acontecer de fato em meados dos anos 60. Em segundo lugar, os filmes eram mudos e a trilha sonora ficava a cargo de um pianista ou até mesmo de uma pequena orquestra, que poderia contar inclusive com maestro. Foi em 1927 que surgiu o primeiro filme sonoro de sucesso, graças ao aperfeiçoamento dos amplificadores e à introdução do sistema Vitaphone: tratava-se de “The Jazz Singer”, lançamento da Warner Brothers. No entanto, o cinema mudo só perderia sua hegemonia, de fato, nos anos 30.
É ainda na década de 10 e 20 que o cinema chega aos arrabaldes de Porto Alegre. Apenas nessas décadas foram inauguradas as seguintes salas: Familiar (Azenha – 1911), Cosmopolita (Navegantes – 1911), Nollet (Cidade Baixa – 1912), Força e Luz (Navegantes – 1912), Garibaldi (Cidade Baixa – 1914), Colombo (Floresta – 1914), Royal (Partenon – 1914), Thalia (São João – 1914), Astor (São João – 1923).
A expansão da sétima arte encontrou terreno fértil nas zonas periféricas da cidade em virtude de inúmeros fatores. Em primeiro lugar, os teatros e consequentemente as produções teatrais estavam em crise. O Teatro São Pedro, por exemplo, estava em péssimas condições no início do século XX. Em segundo lugar, ao contrário do que muitos pensam, os ingressos para o cinema não eram caros, o que dava acessibilidade financeira de parcelas menos abastadas da sociedade a esse tipo de entretenimento. Um ingresso custava, mais ou menos, o mesmo que um quilo de arroz, para se ter uma ideia. Em terceiro lugar, mas não menos importante, as administrações de José Montaury (de 1897 a 1924), Otávio Rocha (de 1924 a 1928) e Alberto Bins (de 1928 a 1937), ainda alinhadas ao progressismo positivista, imprimiram sensíveis melhoras aos arrabaldes da cidade, com expansão da rede elétrica, de água e esgoto e pavimentação de ruas. Era a modernidade que chegava pela água encanada, pela luz elétrica e também pelas telas de projeção.
Em 1930, no bairro São João, é inaugurado o Cine Rosário, localizado na Benjamin Constant, nº 305. Já havia na região o Thalia – Avenida Eduardo (Atual Presidente Roosevelt), próximo à Cristóvão Colombo - e o Astor – quase esquina da Benjamin Constant com a Cristóvão Colombo. No entanto, estes ainda ficavam mais em direção ao Floresta, não havendo nenhuma sala de cinema em torno do núcleo urbano que desde o século XIX havia se formado em torno da região da Igreja São João Batista.
A fachada do Cine Rosário era de inspiração neoclássica e sua programação tinha apelo bem popular, com o objetivo de entreter o público do bairro, de caráter menos abastado do que das áreas centrais de Porto Alegre. Mazzaroppi, Teixeirinha, José Mendes e westerns foram presenças constantes na imensa tela que divertiu o público da Zona Norte. O local comportava 1180 e lugares e chegou a contar com um amplo restaurante. Seu proprietário mais ilustre foi Honório Silveira Dias, que emprestou seu nome a conhecida rua do bairro.
Benjamin Constant à altura do Cinema Rosário em 1977. Fonte: Gaúcha ZH
À noite, seus letreiros se destacavam na noite do bairro São João, e os inúmeros cartazes colados à sua frente anunciavam as possibilidades de experiências cinematográficas oferecidas. O Rosário também era lugar de encontro de casais. Muitos devem ter se formado após uma matinê. Na saída dos filmes, era possível comer um cachorro-quente, que era composto por um pão aquecido, salsicha, molho, ketchup e mostarda apenas. Isso se já não se estivesse empanturrado pelas balas, pipocas e refrigerantes que eram vendidos tanto no hall quanto pelos baleiros que circulavam por entre os corredores.
Fachada Cine Rosário em 1970. Fonte: Arquivo ZH
O Cine Rosário ficou aberto por cinco décadas e exibiu milhares de sessões, comportou um número incontável de pagantes e constituiu-se como um grande espaço de memória afetiva da Zona Norte de Porto Alegre. À sua frente, operou, durante décadas, uma parada de ônibus, o que demonstra que o local foi durante muito tempo ponto central no bairro e consequentemente, de intensa circulação de pessoas.
Outros dois cinemas gozaram de muito sucesso na região e abriram suas portas nas décadas seguintes, seguindo o êxito do Cine Rosário. Trata-se do América – localizado na Assis Brasil, inaugurado em 1947 – e o Presidente – localizado na Cristóvão Colombo, inaugurado em 1958 -, quase ao lado do Cine Orpheu.
Em 30 de Abril de 1980, aconteceu a última sessão do Cine Rosário. Segundo reportagem do Correio do Povo, ela “foi acompanhada por vários velhinhos e velhinhas, casais que deviam ter muito de seu passado ligado à sala exibidora”. Durante os próximos quatro anos, o local permaneceu abandonado. Em 1984, o prédio foi demolido e, desde então, nada mais foi construído na área, que atualmente está murada e serve de estacionamento.
Local onde por 50 anos funcionou o Cinema Rosário. Foto do autor.
É curioso pensar que o vazio do que não existe mais já foi palco de novidade tecnológica para minha falecida avó. No fundo, tecnologia é isso mesmo: aquilo que nos surpreende, que se mostra como uma novidade. Há uns quatro anos, fiquei perplexo quando, entrando em uma sala de aula, um aluno pediu para tirar uma selfie comigo e eu percebi que meu rosto foi trocado pelo dele na tela do celular. Isso será o meu cinema daqui a algumas décadas?
Enquanto isso, divirto-me convertendo um DVD (que já foi convertido de um velho VHS de minha primeira eucaristia) em arquivo MP4 para salvar no Drive do Google. Agora, não precisa se nem mais daquela “coisa redonda brilhosa com um furo no meio”. Acho que minha avó ficaria feliz em saber que está na nuvem. Sinto sua falta. Também sinto falta deste cinema, que nunca conheci. Talvez por isso mesmo o sinta.
Cristiano Fretta é escritor, professor e músico
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