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ERROS DE UMA VIDA BOÊMIA



Era madrugada. Ele desembarcou do carro de um amigo que o deixou em frente ao condomínio. A bengala o conduziu com moderada segurança até o elevador. Tateou os botões até encontrar o seu.

Para não acordar a mulher, empurrou a porta do apartamento com toda cautela que lhe era possível. Para evitar algum acidente em móveis ou outros objetos, agachou-se e, rastejando, movimentou-se até o quarto do casal.

Ao apalpar a cama, sentou-se com certa dificuldade, tirou as calças e a camisa. Da mulher apenas ouviu um fio de reclamação: “sempre tarde e, como sempre, cheirando a álcool”. Ele nada disse, apenas ajeitou-se como pode. De conchinha, enlaçou-a levemente e assim adormeceu.

Uma dor de cabeça insuportável o despertou mais cedo do que de costume. Tateando, chegou até a cozinha para tomar um comprimido e preparar um café preto bem forte. Não encontrou o pote de café no armário, nem a cafeteira sobre a bancada. Até pensou em acender a luz, mas percebeu a inutilidade do gesto. Quando pensou em perguntar à mulher ou à filha onde estava o que procurava, seu braço esquerdo chocou-se violentamente contra um filtro de barro sobre o balcão da cozinha. Um grande estrondo ecoou pela casa toda. A mãe e a filha acordaram sobressaltadas e caminharam até a cozinha ainda esfregando os olhos. Ao vê-lo, soltaram um grito tão forte e tão terrível que o som atravessou as paredes do condomínio inteiro e de prédios de todo o quarteirão.

Nisto, toca a campainha do apartamento. A vizinha do andar inferior, bastante aflita, pergunta se está tudo bem. Antes que a mulher e a filha pudessem responder qualquer coisa, ela assiste à cena mais surpreendente e inimaginável de toda a sua vida: o homem que estava de costas e juntava cacos do filtro de barro apenas de cuecas e de meias, na cozinha de uma vizinha praticamente desconhecida, era nada mais, nada menos... do que o seu marido que ainda não voltara da noite anterior!


Dioclécio Lopes é professor de Língua Portuguesa da rede pública municipal de Porto Alegre, com pós-graduação em produção e revisão textual. Trabalhou no Jornal Zero Hora como revisor de textos e na rede estadual de ensino como professor de LP.

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