É possível um país resistir a corrosão moral proposta pelo programa de costumes de Jair Bolsonaro? A crítica do poder deve ser, nesse momento, a da afirmação de que, com Jair Bolsonaro, vivemos um governo delirante e perverso. Em El delírio occidental (MRA Ediciones, 2014), o filósofo francês Dany-Robert Dufour mostra que nossa sociedade está imersa em um grande delírio. Seu argumento se baseia em nossa incapacidade de atingir a felicidade e o nosso desenvolvimento como seres humanos porque o mundo assumiu um nível delirante. Aqui, a ideia é que o crescimento exponencial do capital leva a loucura. Analisando o campo do trabalho, do ócio e do lazer como espaços que cedem as exigências do mercado, onde tudo é convertido em produto de consumo, ele mostra que o efeito é a produção de um enorme desencanto porque levam as três esferas fundamentais da vida, o amor, o trabalho e o ócio a perderem seu significado. Esta ideia também está presente em outra obra do autor, A Cidade Perversa - liberalismo e pornografia (Civilização Brasileira, 2013) onde Dufour estabelece a diferença entre cidade clássica e a cidade perversa: enquanto a primeira “se trata de uma Cidade que obedece às leis criadas pelos homens para escapar às leis da Natureza”, a segunda, a cidade perversa, é o contrário, “é uma cidade que trata de trazer para o primeiro plano as leis da natureza” (Dufour, 2013, p. 279-280). Quer dizer, nesta cidade é o campo de funcionamento do perverso que é privilegiado, o autor está interessado não nos atores protagonistas da perversão, mas nas enunciações perversas, as formas discursivas dos sujeitos perversos “o perverso, com efeito, é aquele que se permite ir olhar ali onde é proibido, que procede por infração e abre brechas nos sistemas murados” (Dufour, 2013, p. 302).
O filósofo Wladimir Safatle, outro notável estudioso das relações da psicanálise e da sociedade, em seu texto “Por uma crítica da economia libidinal” (IDE: Psicanálise e Cultura, São Paulo: 2008, 31(46), 16-26) prefere opor a sociedade de produção a outra, a sociedade de consumo “no sentido de que os problemas vinculados ao consumo acabam por direcionar todas as formas de interação social e de desenvolvimento subjetivo” (Safatle, p. 20). Em ambos, é sempre o capitalismo que afeta a consciência e a subjetividade, colocando para fora do eu o que deveria ser reprimido, ideia que, mais uma vez, mostra que a definição de uma sociedade perversa tem uma notável força explicativa para o bolsonarismo. A psicanalista Elisabeth Roudinesco em “A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos” (Zahar, 2008), afirma que o termo passou a definir-se a partir da obra de Sade para aqueles que invertem a radical lei que rege as sociedades humanas: obrigação de sodomia, do incesto e do crime. Desde que soubemos que Jair Bolsonaro teceu elogios ao torturador Brilhante Ustra, ele mereceu um lugar distinto entre aqueles que adquiriram uma reputação devida a suas atitudes inumanas da galeria dos grandes perversos. Roudinesco lembra que, inclusive, o filósofo Michel Foucault desejava incluir um capítulo dedicado ao povo dos perversos em sua História da Sexualidade, inspirado por Georges Bataille “inversamente simétricas as vidas exemplares dos homens ilustres, dizia ele em suma, as dos perversos são inomináveis” (Roudinesco, 2008, p. 7).
Mas é no capítulo desta obra intitulado “A sociedade perversa”, que Roudinesco aprofunda a questão de saber se, o sistema democrático fundado no individualismo, na livre concorrência e no mercantilismo, está imune a uma inversão da lei que leve a aberrações contrárias a seus princípios, idéia similar a que emerge no pensamento de Safatle quando ele se refere a emergência de um novo biopoder (Michel Foucault) aplicado a mensuração de todas as atividades humanas. Para Roudinesco, “a nova utopia das sociedades democráticas, globalizadas, ditas pós-modernas [é]: suprimir o mal, o conflito, o destino, a desmedida, em prol de um ideal de gestão tranquila da vida orgânica”. Por outro lado, ela questiona se “não haveria o risco de um projeto desse tipo ser capaz de fazer ressurgir, no seio da sociedade, novas formas de perversões, novos discursos perversos, quer dizer, se são seria esse ideal capaz, em suma, de transformar a própria sociedade numa sociedade perversa?”. Se depois de Auschwitz criamos um modo de extermínio do próprio homem, a questão onde foi parar a bestialidade humana perde o sentido porque é nela que estamos hoje; da mesma forma, quando Roudinesco cita a travessia sexual da barreira das espécies como cerne de mitologias fundadoras da origem das sociedades humanas, o primeiro ato de bestialidade “de um uso perverso do corpo do animal”, a passagem não incrível similaridade com as reminiscências de Jair Bolsonaro sobre sua própria iniciação sexual, onde teria “arregaçado uma galinha?”.
A perversão é do campo do proibido, mas o próprio conceito evoluiu ao longo do tempo. Roudinesco lembra que, para os sexólogos do século XIX, o homossexual, a criança masturbadora e a mulher histérica encarnavam instâncias da perversão humana, sendo o zoófilo, após a supressão do crime de bestialidade e sodomia, ter deixado de ser considerado pela medicina um perverso para ser considerando um doente. A perversidade, para a autora, está na sociedade mercantil que capaz de imaginar o ideal de uma fetichização globalizada do corpo e do sexo de humanos e não humanos (basta olhar qualquer site pornô para confirmar), o que significa que hoje o capital depende da supressão de todas as fronteiras, da norma e da transgressão da norma, etc. “essa sociedade, de certa forma, é mais perversa que os perversos que ela não sabe mais definir mas cuja vontade de gozo ela explora para em seguida melhor reprimi-la” (Roudinesco, 2008, p. 185). Se no passado, a sexologia classificou os perversos em diversos tipos, na atualidade essa perspectiva se inverteu porque desde 1987 a perversão desapareceu do Manual Diagnostico de Distúrbios Mentais (DSM), sendo substituída pela noção de parafilia. Roudinesco critica esse movimento porque acredita que o termo perversão era a forma de humanização da psiquiatria baseada numa filosofia do sujeito que foi substituída por critérios comportamentais sem qualquer referência a subjetividade. Para Roudinesco, o problema é que o termo não inclui atos considerados pela Lei como crimes ou delitos: estupro, crime sexual, delinquência, os vícios ou as hipertrofias do narcisismo “se mais ninguém é perverso, uma vez que a palavra morreu, qualquer pessoa é então suscetível de se-lo” (Roudinesco, 2008, p. 188), diz. É essa a abolição das diferenças, objetivo da sociedade sadiana pela “redução dos sujeitos a objetos, dissolução do sentimento de culpa” (Roudinesco, 2008, p.189), que é a abolição da “parte maldita” que transforma a sociedade, que a faz perversa. O estado não dissimula mais sua admiração por práticas bárbaras e vergonhosas.
Onde o bolsonarismo se faz perverso? Para Roudinesco, na perversão do discurso emitido que não deseja que os Outros, que inclui negros, índios e homossexuais alcancem um novo status legal, os bolsonaristas são hostis as normas que fazem a reforma em prol da igualdade de novos atores no Código Civil, ao contrário, o que eles desejam é “mantendo-os, custe o que custar, em seu lugar” (Roudinesco, 2008, p.191). Para Roudinesco, o termo perverso deixa de ser uma categoria psiquiatrica para se transformar em categoria social, definindo aquilo fundado originalmente numa justa causa, produz resultados opostos aos desejados. Assim, o capitalismo é um sistema perverso porque a busca do lucro através de um trabalho eficiente, mas cujo efeito é transformar a produção social em fracasso individual, depressão e suicídio. No campo da política bolsonarista, isso emerge no caráter enganador de suas promessas, nas nas artimanhas políticas que organiza, no uso de mitologias relativas ao complô, à conspiração que atualizam a noção de perversão baseada no eixo do bem e do mal, do divino e do satânico. Não é essa a ideia por detrás das promessas que faz de aumento do salário-mínimo em sua campanha, quando nunca o fez durante seu mandato inteiro, ou na tentativa de confundir o processo eleitoral com supostos prejuízos na campanha, e finalmente, na evocação constante de que, se Lula for eleito, o país irá para o campo do mal, o... comunismo?
Por outro lado, a chamada “parte obscura de nós mesmos”, a que se refere o título da obra, é a ideia paradoxal de todos somos capazes de gozar do mal. Agora, podemos fazer o que quisermos, desde que não seja em praça pública, afirma Roudinesco “nesse contexto, os perversos, portanto, não são mais vistos como perversos a partir do momento em que a Lei não os define como perigosos para a sociedade e suas perversões permanecem privadas” (Roudinesco, 2008, p. 195). Isso faz de Jair Bolsonaro essa espécie de primeiro perverso normalizado, autorizado, despenalizado, que reproduz em seu discurso o imenso relato de prazeres que a produção da dor alheia lhe provoca. Não foi assim com o célebre “eu não sou coveiro?” ou na imitação da falta de ar de uma vítima da covid? Ele não tira daí, com seu humor perverso, prazer da dor alheia? A leitura de Roudinesco nos sugere a questão: porque não podemos identificar como delinquente o comportamento do presidente quando perturba a ordem pública como os doentes que recusam qualquer tratamento, ou os doentes sexualmente promíscuos que recusam qualquer proteção? Na ordem atual das coisas, o perverso é para o presidente, aquele que se recusa a trabalhar, nunca o sistema capitalista é perverso, já que a desigualdade possa ser sua conseqüência.
No discurso bolsonarista, o perverso é sempre o Outro. E, nesse sentido, diz Roudinesco “foi a figura do pedófilo que substituiu em nossos dias o invertido para encarnar uma espécie de essência da perversão no que ela teria de mais odioso, uma vez que ataca a infância, e portanto, o humano em devir” (Roudinesco, 2008, p.197). Quando Jair Bolsonaro diz: “Eu parei a moto numa esquina, tirei o capacete e olhei umas menininhas, três, quatro, bonitas, de 14, 15 anos, arrumadinhas num sábado numa comunidade. E vi que eram meio parecidas. Pintou um clima, voltei. ‘Posso entrar na sua casa?’ Entrei. Tinham umas 15, 20 meninas sábado de manhã se arrumando. Todas venezuelanas. E eu pergunto: meninas bonitinhas de 14, 15 anos se arrumando no sábado para quê? Ganhar a vida”. Essa fala do presidente da República foi o momento recente mais significativo para denunciar sua perversão pela naturalização do tema da exploração e violência sexual contra crianças. A campanha do PT deveria nesta última semana focar nesse aspecto crucial, pois ela sempre foi vista como ato carregado de perversidade. Pior, o presidente fala da situação em plena lucidez, não é um louco, mas o faz na certeza de que não instituição capaz de enfrentá-lo “digam o que disserem, eles controlam sua pulsão” (idem, p 205). Bolsonaro faz sua fala pedófila porque acostumou-se a desafiar a Lei, agrada-lhe desafiar os limites sociais, a vontade punitiva da sociedade. Ele, mais uma vez, desafia a lei. Novamente, o efeito perverso: o homem, pois presidente, que deveria garantir a lei, é o que mais a desafia.
Com o bolsonarismo, a noção de perversão não figura como desvio sexual, se afirma como estrutura perversa de um projeto social, a versão mais abjeta da vontade de descontruir integramente um país, um projeto que se baseia no pressuposto de que a perversão é necessária a expansão do capital. Da mesma forma que “Sade fazia do crime, do incesto e da sodomia os fundamentos de uma sociedade imaginária centrada na inversão da lei” (Roudinesco, 2008, p. 217), Jair Bolsonaro transforma os ideais estabelecidos pela Constituição de 1988 naquilo que se deve desejar odiar. Seu discurso faz a reconversão das figuras de democracia, de respeito ao outro, de valorização do trabalhador numa combinatória perversa de papéis e posturas, maneira nova de "renormatizar" a sociedade brasileira. Tudo deve servir ao êxtase do capital. A força da perversão governamental bolsonarista é a produção da transgressão em todos os âmbitos, do direito individual ao social, e só poderemos quebrar sua lógica se considerarmos as dimensões histórico-políticas em que se gestou, mas também o estágio em que se encontrava o desejo destas populações.
No passado, diz Roudinesco, os herdeiros de Freud temiam que seus casos clínicos perversos, abusadores sexuais inveterados, entre outros, se dissimulassem em associações para dissimular seu furor destruidor. Não se preocupe, com Jair Bolsonaro, seus problemas acabaram: mais armas poderão ser legalizadas para ficar nas mãos dos cidadãos, o cidadão poderá lamber o cano de uma arma no meio da rua, nunca os cidadãos estiveram tão diante de seu inconsciente não reprimido, como durante sua presidência. Somente o bolsonarismo pode ser definido como o campo social dos perversos “ele, o motorista de tele-entrega sabe que está em um trabalho precário devido a destruição das políticas trabalhistas por Jair Bolsonaro. Sua perversão está em que, afixou, justamente na caixa onde ficam seus alimentos, a faixa “vote em Jair Bolsonaro”. A figura do trabalhador explorado que vota no seu algoz é a figura que resume um governo perverso. Hoje, os perversos saíram da clandestinidade graças a política, e se encontram em todo o lugar. Conseguirá o discurso petista convencer que a perversão que atravessa o país não passa de uma doença social, e que a eleição de Lula, a única forma de eliminar os perversos colocando-os novamente para dentro do alcance da Lei? Ou será que perdemos, de uma vez para sempre, a capacidade de nomear a perversão?
Artigo de Jorge Barcellos, Doutor em Educação, autor de O êxtase neoliberal (Clube dos Autores).
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