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Sarandirú

Tiago Maria

“Uh, Sarânda jamais vai morrê!” – Cantávamos isso nas festas do Clube Comercial Sarandi. Não me perguntem por quê.

Com quase sessenta mil moradores, o Sarandi, na Zona Norte de Porto Alegre, é o segundo bairro mais populoso. Faz naquela região uma tríplice fronteira com as cidades de Cachoerinha, Canoas e Alvorada, por isso serve como um dos principais acessos à Capital pra quem vem do litoral ou do interior.

Também deve ter por ali um portal invisível que me leva direto ao lugar onde os meus amigos e eu, na infância, costuramos de sonhos o mundo estúpido que nos cercava, e ainda cerca. É sério. “Alguma coisa acontece com este imbecil / Que só quando cruza a Sertório com a Assis Brasil”.

O Sarânda, sim, edição, assim mesmo, como a gente chama, pois o Sarânda além de muitos habitantes também é enorme em território, abraça o Pq. Minuano, a Meneghetti, Nazaré, Parque – pros mais da antiga – a União, a Vila Leão, Santa Rosa, Nova Gleba, Santo Agostinho e por aí vai periferia afora.

Mas eu me teletransporto sempre é pras esquinas e becos da Elizabeth, Respeito e Nova Brasília. Vilas benditas entre as igrejas São José e Santa Catarina. É ali, no Sarandirú profundo, da ponta do Dique até a faixa de asfalto, que o mundo se apresentou pra mim lá pela metade dos anos 1980. Não resisti. Tirei meu All Star e pisei novamente naquela rua que tanto já fez doer meu menino de pé no chão. Vidal Barbosa, 697.

No segundo passo um caco de vidro. O terreno já não é mais meu aliado como nas peladas com trave de chinelo. Na calçada, virando o nariz pras goiabeiras, o João Bolão da vó Maria que tingiu de roxo minhas saudades. “Tu me mancha mais esse casaco da escola pra tu vê”, prometia minha mãezinha com tanta verdade nos olhos que eu até tirava pra brincar com a gurizada. Daí que deve ter uma coleção de casacos meus perdidos em alguma dimensão do meu passado.

Uma tardinha abafada dessas de maio, ia passando um carinha que parou no meio do jogo, reuniu todo mundo, disse uma coisa estranha, apontou uma caixinha pro telhado da casa do seu João e saiu rindo sozinho. “E o tamanho das guampa?” – perguntei, abafando a boca, quando já ia quase na ponta da rua. O carinha se virou erguendo a mão num aceno. “Até que tá grande” – respondi. E ríamos até fisgar o esterno.

Na casa da frente, onde morava o Chonguinha, alguém sempre abria o portão pro casal de dobermanns sair atropelando tudo. “Esses piá excomungado”. Na esquina, ao lado do terreno baldio, a casa da dona Irma, vó do Kabeça, ela fazia uns picolezinhos nessas forminhas de gelo que devo ter na minha conta por umas duas gerações ainda.

Vez que outra o pai quitava a dívida mediante a promessa de que ela não vendesse mais fiado. Mas sabem como é vó de amigo, né? No portão de lata do seu Simão, que consertava aparelhos eletrônicos, era onde gostávamos de jogar três dentro – três fora. A bola que caísse no pátio voltava murcha, faltando o ventil ou com talho de faca.

“Guri e cachorro só amarrando!” – rosnava furioso o seu Simão. Uma vez, depois de perder no par ou ímpar pra ver quem buscaria a bola, quando pisou de Kichute no outro lado do muro o Kabeça foi pego pelo braço e levado lá pros fundos da casa. Ficamos em pânico. “Vamo chama a polícia, viu?” – gritaram uns. “Pior que isso, vamo chama a dona Irma!” – berrou o Chonguinha. Do nada, veio o Kabeça com a bola (cheia) numa mão e um pedaço de nega-maluca na outra. Nunca nos disse o que aconteceu, mas nos convenceu a não jogar mais no portão do seu Simão.

O dono do mercadinho Bicampeão, seu Juranda, era pai dos gêmeos. "Atentados, filhos dum capeta", chamavam-lhes com certa frequência os vizinhos. Seguido seu Juranda e a esposa fechavam o mercadinho e se encontravam no hospital. Ele levando um dos filhos que caiu do caminhão enquanto pegava carona pendurado nos para-choques, e ela com o irmão que quebrou a perna tentando pular a janela pra fugir do castigo.

Tamanho era o desespero dos pais, que acorrentaram um deles (não lembro qual) ao botijão de gás. Não deu muito e estavam os dois, tomando banho no açude da olaria. Brincavam de boia com o botijão acorrentado na canela. Só respeitavam o Paulo Maloqueiro, faixa encardida de maloquendô, figura que emudecia a todos quando passava. Enrolado num cobertor xadrez, dois cachorros na escolta, não sei o que fedia mais, o Paulo Maloqueiro, os cachorros ou o cobertor.

Voltando agora àquela rua tão minha cúmplice, achei tudo muito diferente, porém tudo igualzinho, só bem menor do que parecia aos meus olhos que bebiam aos goles uma sede de tudo. Bateu uma saudade agora dos picolezinhos da dona Irma. Dos dobermanns, não tem mais dobermanns? De João Bolão. Do Cidinho, treinador do Continente, fábrica de craques no campo atrás do CIEM. Das piscinas do CECOVE. Do meu irmão vindo pra minha cama de solteiro agarrar minhas orelhas até pegar no sono. Da tia Miguela, que vendia uns barato pra galera no fio do bigode que nem tínhamos ainda. A gangue das cabrita. Até do Paulo Maloqueiro eu sinto falta hoje. A saudade bateu e eu tô aqui apanhando.

Atravesso a rua pra mexer com a gurizada que jogava bola. “Chega aí, galera, fazer uma selfie”. Já de saída, melancólico, quase na ponta da 21 de Abril, gritaram alguma coisa que eu não entendi direito. Aceno com o braço estendido e eles babam de rir. Essa gurizada…

Mas olha quem tá lá na frente da AMVEP: seu Nelson Banguela. Perdeu todos os dentes apartando a briga na invasão da Asa Branca. Daí o apelido carinhoso que ele ostenta como um Nobel. Mas isso é papo pra outro passeio nesse Sarânda em que já não vivo mais, e que nunca para de viver em mim. “Uh, Sarânda jamais vai morrê!”.



E com vocês, por mais incrível que pareça, Tiago Maria, brasileiro, cansado, 42 anos, cardioinsistente. Profissão: esperança. Participou das antologias “Santa Sede - Crônicas de Botequim” - Safra 2013, “Maria Volta ao Bar” (2014) e “Cobras na cabeça” (2015). “SEMVERGONHO, crônicas com e sem noção”, lançado em outubro de 2022, é seu primeiro livro solo.





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