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A revolução dos cabelos brancos

Geração que incendiou os anos 60 agora desafia o silêncio imposto à velhice — mas está pronta para dividir o palco?

Era um dia cinzento de maio quando, ouvindo um podcast de uma grande escritora que se foi, me peguei com uma pergunta inquieta: a minha geração, a dos baby boomers (mesmo que eu tenha chegado nas rabeiras), está disposta a ceder protagonismo para as novas gerações que estão vindo com tanta potência?

Nos anos 60/70, fomos jovens que tomaram as ruas. Desafiamos ditaduras, reinventamos o comportamento e o conceito de juventude. O jovem, como agente social e político, rompia com os ditames de uma sociedade que lhes reservava papeis que não queriam assumir como norma de vida.

Essa rebeldia, antes avessa à ordem, foi rapidamente cooptada por uma sociedade de consumo em ascensão. A indústria capturou o imaginário da juventude e a transformou em mercadoria. Da rebeldia nasceu uma estética: roupas, músicas, corpos e estilos passaram a representar não só uma fase da vida, mas um ideal de existência. A juventude tornou-se fetiche, sinônimo de liberdade, saúde, beleza e desejo. Assim, fomos vendo a transformação da experiência humana em narrativa publicitária — e o envelhecimento em ameaça a essa promessa de vitalidade permanente.

Do protesto ao protagonismo

A juventude dos anos 60 não nasceu do acaso. Foi forjada por universidades fervilhantes, cultura pop em ebulição e um mal-estar com a ordem instituída. As lutas por liberdade, direitos civis e emancipação feminina foram bandeiras tremuladas por jovens de classe média urbana, com um recorte racial e de gênero que hoje sabemos ser limitado. Era, em grande parte, uma rebelião universalista, masculina, branca e presa a padrões normativos de sexualidade e comportamento.

As lutas identitárias, que hoje ecoam com força, estavam à margem. Mulheres negras, pessoas LGBTQIA+, corpos com deficiência, saberes de territórios periféricos: esses sujeitos eram, muitas vezes, invisibilizados. Agora, essas vozes tomam corpo e centro. E se a geração que outrora marchou pela liberdade quer manter seu papel de agente de mudança, precisa acolher essas pautas com escuta real e aliança verdadeira.

A velhice como campo de disputa

Em A Velhice, Simone de Beauvoir não apenas descreve a marginalização dos corpos envelhecidos — ela escancara um pacto social de negação. O que chama de “conspiração do silêncio” não é mero descuido ou falta de atenção: é um mecanismo sistemático de apagamento, em que a sociedade, ao negar a velhice, preserva a ilusão da eterna juventude como valor absoluto. O idoso torna-se, então, um espelho incômodo: projeta o que ninguém quer ver em si mesmo, e por isso é empurrado para as margens.

Beauvoir vai além da denúncia moral. Ela descreve a velhice como uma construção histórica, simbólica e política. Não há nada de natural no desprezo pelo velho. O que há é uma cultura que associa valor à produtividade econômica, à beleza padronizada e à aceleração e que, por isso, desqualifica aquele que já não performa segundo esses critérios.

Ela também desmonta os discursos falsamente benevolentes. A figura do “velho sábio”, reverenciado mas excluído, convive com a caricatura do “velho ranzinza”, doente, caducante. Ambos são personagens congelados, que servem menos para compreender a experiência do envelhecimento e mais para controlá-la. O idoso real, com desejos, angústias, projetos e contradições, continua sem lugar na cena pública.

Ao afirmar que o envelhecimento é uma dimensão do ser, não apenas do corpo, Beauvoir nos convoca a um olhar radicalmente ético: aquele que reconhece a velhice não como declínio, mas como parte do humano. E nos lembra que, se a velhice é universal como destino biológico, sua dignidade é uma construção coletiva — ou sua ausência, uma denúncia do modo como escolhemos viver em sociedade.

Do antienvelhecimento ao mercado prateado

Nas últimas décadas, a negação do envelhecimento gerou não apenas exclusão simbólica, mas também um mercado bilionário. A chamada economia prateada, voltada ao consumo de pessoas com mais de 60 anos, cresce com velocidade. Mas há uma armadilha: por trás da valorização do consumidor sênior, muitas vezes esconde-se a mesma lógica que antes o silenciava. Agora, não mais por inutilidade, mas por utilidade mercadológica. O idoso é admitido desde que consuma, performe juventude e mantenha a aparência da vitalidade eterna. O culto ao antienvelhecimento segue operando, ainda que disfarçado de bem-estar e longevidade ativa.

A transformação que precisamos vai além do consumo: é cultural, social e política. Não basta envelhecer com acesso a cremes, viagens e redes sociais. É preciso envelhecer com direito à escuta, à influência, à complexidade. Isso exige um novo pacto coletivo.

Nem nostalgia, nem apego ao centro

O protagonismo da velhice ativa, reconhecido pela OMS como um ideal de envelhecimento com autonomia e participação, é fruto de lutas passadas, mas também de conquistas coletivas recentes. Não se trata de herois solitários, mas de sujeitos que fazem parte de uma engrenagem social.

Por isso, é preciso cuidado: o orgulho por tudo que se construiu não pode virar obstáculo para as transformações que estão vindo. Se, um dia, fomos excluídos por sermos jovens demais, que não sejamos agora aqueles que excluem por sermos velhos demais. A escuta intergeracional é um compromisso com a democracia. Não é apenas uma prática gentil, mas uma postura política de abertura ao novo — e de reconhecimento de que o novo também carrega memórias.

A metamorfose como caminho

O futuro é um lugar que se constroi em diálogo. A geração que incendiou os anos 60/70 tem muito a dizer, mas não pode falar sozinha. Ao usar seu capital simbólico para amplificar outras vozes, ela reafirma sua potência sem envelhecer o pensamento. A verdadeira sabedoria não está em monopolizar os microfones, mas em saber quando cantar e quando escutar.

Talvez o grande gesto revolucionário agora não seja apenas passar o bastão, mas correr junto. Ombro a ombro, passo a passo, no compasso das diferenças que se somam.

Permanecer na cena não como protagonista exclusivo, mas como parte de um coro que aprende novas canções sem esquecer as antigas. Um coro que não compete por destaque, mas harmoniza gerações em um mesmo fôlego de mudança.

Essa é a verdadeira revolução dos cabelos brancos: não dominar o palco, mas ampliá-lo. Para que mais vozes entrem. Para que mais mundos se encontrem.



Elenara Stein Leitão é escrevente, pesquisadora, arquiteta. É membro do Coletivo Metamorfose da Vida.

 

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