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O Olívio da Zona Norte – Parte 1


Naqueles finais de tarde do início dos anos 90, eu sentia uma enorme vontade de andar de avião. Debruçado no muro baixo da antiga casa de minha avó, na Avenida Souza Reis (hoje há uma decrépita construção inacabada no lugar), eu vigiava um pedaço de céu azul entre dois prédios, à espera de que uma aeronave por alguns segundos entre eles passasse fazendo um enorme barulho. A pista do aeroporto ficava a apenas 1km dali, a Souza Reis era e ainda é caminho para o aeroporto - mas, para mim, aqueles enormes charutos voadores que se sustentavam no ar faziam parte de um mundo muito distante do meu. Pessoas ricas e de terno pela janelinha olhariam indiferentes para as ruas que eram meu universo particular, que aos poucos ia sumindo, ficando insignificante frente a toda extensão de um horizonte a milhares de metros de altura. Parecia muito estranho que uma pessoa que passasse pela frente daquela casinha de madeira pudesse estar, em apenas algumas horas, em locais tão diferentes do bairro São João, como São Paulo, Rio de Janeiro ou até mesmo Nova Iorque ou Paris.

Nada do bairro São João parecia ter importância decisiva em algum contexto maior. Nos aniversários de Porto Alegre, nunca aparecia a Souza Reis. Na televisão, jamais foi feita uma reportagem sobre as ruas esburacadas ou sobre um conhecido ponto de venda de drogas, a apenas algumas quadras da casa da minha avó. Meu tio Luís, conhecido em todo o bairro, não merecia nenhum tipo de reportagem especial. Não havia na cidade uma praça com o nome do meu avô falecido, e a empresa de casas pré-fabricadas do meu pai não aparecia no Pequenas Empresas Grandes Negócios. Tudo ali era à margem. Pegava-se um ônibus e em pouco tempo se estava no Centro, o importante Centro Histórico da cidade, que se fazia vertical e imponente por meio de seus prédios. Havia aqueles leões brancos em frente à Prefeitura. No muro da casa da minha avó aparecia, de vez em quando, um ou outro gato vira-lata.

Eu e meus pais íamos toda sexta à noite à Locadora Gaúcha pegar dois filmes em VHS. Ela ficava quase na esquina da Souza Reis com a Benjamin Constant, debaixo de um prédio que foi demolido para a construção do viaduto Utzig. Nós morávamos na Sertório, a apenas uma quadra da casa da minha avó. Certa vez, acho que por 1991 ou 1992, enquanto eles liam o verso das “fitas” de suspense, eu fui para outro corredor tentar espiar a capa de algum Sexta-Feira 13. Eu havia sido proibido de ver os filmes do Jason desde que a exibição de um deles na televisão aberta me provocou uma noite de medo e insônia. Eu, tenso e escondido, puxava o filme Jason em Nova Iorque quando a voz do meu pai fez com que eu o colocasse imediatamente no lugar:

- Filho, vai escolher um desenho, vai! – disse ele.

Eu caminhei até a prateleira dos desenhos e me resignei a escolher um deles. Enquanto mexia nas fitas, a porta da locadora se abriu e um homem entrou. Meu pai e minha mãe o olharam com certa curiosidade. O mesmo fez o dono da locadora, que estava sempre em silêncio por trás do balcão. O homem que havia entrado tinha expressão séria e vastos cabelos pretos, puxados para trás. Mas o que mais chamou minha atenção foi seu imenso bigode. Acho que eu nunca tinha visto uma pessoa que ostentasse um bigode tão impositivo quanto aquele. Era como se o bigode puxasse o homem. Ele caminhou próximo ao balcão, cumprimentou meus pais e largou:

- Me vê um farvestão dos buenachos.

Prontamente o homem saiu de trás do balcão, foi até uma prateleira e pegou umas três fitas.

- Pois eu vou levar os três – disse o bigodudo, depois de brevemente examiná-las.

A seguir, ele olhou para mim e deu um sorriso que me foi perceptível por seus olhos, pois a boca sumia-se completamente debaixo do bigode. Eu, segurando um VHS do Pernalonga, hipnotizado por aquela excêntrica figura, não retribuí a gentileza.

Instantes depois, quando caminhávamos pela Souza Reis, perguntei aos meus pais:

- O que é favestão?

- Farvestão.

- O que é farvestão?

Meu pai respondeu:

- Farvestão, filho, é um filme de mocinho e bandido.

- E eu posso ver farvestão, pai?

Meu pai e minha mãe riram:

- Daqui a pouco, filho, daqui a pouco tu vais ver – disse minha mãe.

Caminhamos mais uns segundos em silêncio. A uma quadra de casa eu perguntei:

- Quem era aquele homem de bigode?

O tom da voz do meu pai mudou:

- É o Olívio Dutra.

- Quem é Olívio Fruta?

- Dutra.

- Quem é Olívio Dutra? – continuei.

- Ele é prefeito da cidade. Mora aqui perto de nós.

- Ele trabalha no prédio que tem os leões?

- Sim, filho, é lá que ele trabalha.

Cheguei em casa intrigado: como era possível que um homem tão importante quanto ele, que trabalhava no Centro, que era vigiado por aqueles leões brancos, frequentasse a mesma rua da casa da minha avó?


Cristiano Fretta é escritor, professor, músico e diretor do ZN Jornal

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1 Comment


Jean Scharlau
Jean Scharlau
Nov 21, 2022

Está maravilhosa a história a partir da perspectiva do guri. Parabéns! Prossiga!

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