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DOIS OLHARES DE MULHER

“Dois olhares” no plural; “de mulher” no singular. Poesias de Josiane Prestes e Maria Inês Barcelos, numa bem cuidada edição da Paladino/2024.

O livro está dividido entre os poemas das duas escritoras, sendo que o título mostra a unidade, a junção, busca da arte por “duas” mulheres, ambas negras, com suas lutas muito parecidas, tudo igual na superação.

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A primeira parte contém os poemas de Maria Inês Barcelos, trazendo um interessante Prefácio de Flávia Cunha - jornalista, produtora editorial e mestre em Teoria Literária pela UFRGS. Flávia fala do seu contato com a autora por uma atividade de escrita. Por isso, defendo que quem puder, deve frequentar estas atividades.

Maria Inês já vinha manejando a escrita, até porque nossas autoras são do Coletivo de Escritores Negros-CEN- dos/as quais muitos/as estão em nossa Feira do Livro do Chalé da Praça XV, que coordeno.

Maria Inês repete e trabalha o tema do mar, da terra, da ancestralidade e do amor. Esta recorrência não é fortuita, pois são elementos fundantes de sua vida, de esperança, de seu viver.


Faz de sua origem, mulher negra, uma escritora que marca o espaço da escritora preta, criando com a poesia “Buraco Negro” seu “Ponto de Partida”, o que é ser Negro, de uma forma irônica e até engraçada.

         "(...) Tudo isso me faz quem sou!

         No agora, antes e depois,

         Um eterno recomeço

         Passando pela mesmo

         Ponto de partida.”

Na leitura, comecei a ver a firmeza de sua escrita no poema “Sentir”, pelas figuras de linguagem, recorrência sonoras, com contraditórios:

         "(...) Que por mim, não acabaria.   

         Daria a volta ao mundo.

         Mundo que dividimos, entre quatro paredes,

         Em redes, laços, abraços, dores e flores,

         Por vezes secas, mas, ao tocar de teus lábios,      

         Abrem-se, em flores vermelhas

         De amores por ti!”

Ao falar do “Mundo do trabalho”, acaba fazendo um pequeno manifesto contra o idadismo, sem ser um panfleto, mas boa poesia.

A autora usa poucas vezes o recurso da rima, porém, quando o faz, é de forma adequada.

Um bom começo num livro compartilhado. Nunca é tarde, diria, para uma ousada mulher chegando a seu sexagenário ano de vida.

Já Josiane Prestes a segunda dos “dois olhares” é também mulher negra, batalhadora, esposa, mãe, afirmando-se na escrita como autora. Também faz parte do CEN.

Traz o Prefácio de Clara Manganelli - professora, comunicadora e escritora - que destaca a força da autora que vem da alma desde sua infância.

Salienta naquilo que concordo: é a voz da inclusão, da empatia, do respeito e do amor.

Josiane, nos Agradecimentos, creio que não esqueceu ninguém, mostrando a sua generosidade. Destacaria a forma como dedica ao marido e aos filhos.

Tive contato com a Josiane, antes de ler seu livro, por obra da nossa amiga comum: Jeanice Dias Ramos.

Josiane Prestes começa marcando terrenos com o poema “Nossas raízes”:

         “(...) ainda sinto o balançar daquele navio,

         me causa arrepio e eu ainda posso ver

         e sentir nosso sofrer”

Aqui, você começa a entender melhor o título. São dois olhares de mulher. Da mulher negra, das suas ancestralidades iguais, do mesmo sofrer, do mesmo navio que trazia o negro cativo, causando ainda agora arrepio.

Tal qual Maria Inês, o tema é recorrente, está ali presente a Mãe África. Seus versos, como ela mesma fala, rejeitam a pecha da vitimização: “mas a minha lágrima escorre/por raiva de ser, ainda hoje,/negado o meu direito de ser quem sou”.

Tanto é assim que ela em vários pontos vai sinalizando em seus versos a superação, como em Sou Livre:

         “(...) Deixei, por instante,

         a luz do sol

         iluminar o meu ser.”

A autora sabe também trabalhar os contraditórios, até porque como a primeira autora, tem as vivências reais, palpáveis, das periferias.

O sonho do seu amor, que parecia libertador, vira uma cela:

         “Pouco via sua mãe

         Pouco via sua família

         Pouco via seus amigos

         Pouco se via.”

        “... até que um dia cansou. Fugiu, lutou, lutou!”

Como já disse, tem muita força a sua posição ao tratar das “superações”.

         “(...) O medo passou

         a luta se intensificou.”

No conjunto dos poemas “A professora” é o momento de mais força, de novas luzes, de segurança, da nova caminhada. Não é mais só “a” professora, são os alunos, e esta contradição de encanto da profissão e a pouca valorização tem superação “nos outros”: “um futuro brilhante/para seus diamantes!” - os alunos.

Afinal, ela está vencendo, a primeira a se formar, espelha-se no Ziraldo que fala com as crianças, vê o mundo periférico, não rejeita, fala da mãe que perde o filho, não pergunta o motivo, mas sabe o motivo de um suposto amigo, ela era amiga, mas ele chega num ponto e a desdenha, e ela entende. Neste e entre outros poemas, ela dá a volta por cima.

Josiane entende que precisa buscar sua inspiração nas fontes, na ancestralidade, seja na África ou na avó indígena, na mãe, entre os seus, entre suas mulheres pretas, como Maria Inês, com quem divide o livro.


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Adeli Sell é professor, escritor e bacharel em Direito.

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