top of page

Jamais fugirei deles



Olho para um morador de rua e me vejo nele, com ele. Olho para uma mansão e não me vejo em seu interior, embora tente. Medo? Talvez. O que está mais próximo sempre me assombrou muito mais do que uma possibilidade. Quanto mais envelheço, mais sofro com a revolta de meus Eu, de uns fujo de vergonha, de outros a decepção acelera meus passos, e por mais que fuja, corra, não vislumbro solução. Construo esconderijos de que logo esqueço para mais tarde os Eu insaciáveis me surpreenderem, me acusarem. Meus pensamentos, que não conseguem me conduzir à mansão, trazem os moradores de rua. Eles me acompanham. Por vezes, os procuro. Não pretendo me afastar deles.

Dia desses, encontrei um homem no bairro Menino Deus, abriu a boca apenas para sorrir. E sorriu um sorriso sem sentido para minha mediocridade. Não trocamos palavra. Retribui seus sorrisos com minha impotência e algumas lágrimas escondidas. Trouxe comigo seu silêncio perturbador. No dia seguinte, voltei na expectativa de encontrá-lo, nada. Vi aquele homem um dia apenas. Única resposta que obtive.

Frustração repetida por duas semanas. Até que ontem...

- Bom dia.

- E aí, tudo bem?

- Tudo tranquilo. Quando você chegou aqui?

- Cedo.

- Veio de onde?

- Zona Norte, eu acho, perto da baixada... perto do Rio de Janeiro. Sim... São Paulo também, isso aí... isso aí... pode fotografar, claro. Me chamo Lelê... Leandro, é isso aí... isso aí, e seu nome? Luís... legal, legal Luís. Aceita um pedaço do sanduíche? Uma calça? Quero sim, valeu, é isso aí... isso aí... quando vai voltar? Nós somos parecidos, os cabelos principalmente, é isso aí... isso aí. Valeu.

- Vou deixar crescer a barba para ficarmos mais parecidos.

Tranquei minha inutilidade dentro do carro, vidros fechados, chorei de raiva de mim mesmo. Pelo retrovisor, percebi Leandro se afastar. Desta vez, carregava bem menos pertences, na primeira vez, mochila e restos de um colchão integravam sua “bagagem”.

Lembrei da ideia de Lacan, para ele, o inconsciente não seria uma manifestação do Eu, seria do Outro. E me juntei ao Leandro, quem seria esse Outro que nos perceberia, que usaria sua linguagem para auxiliar na construção dos nossos pensamentos? Para onde irão, ou por onde andarão os pensamentos profundos do Leandro? Os meus? Gostaria que se afastassem por algum tempo, me concedessem uma trégua. Por enquanto, nem mesmo o psicanalista me oferece tal conforto. Resta persistir. Quem sabe do Leandro, quem sabe de mim? Por inteiro? Quem?

Numa esquina da Av. José de Alencar, encontro Julia e sua cachorrinha Débora. Confusão é o ponto em comum com Leandro. A rua é consequência desses pensamentos ou seria o contrário? Qual a referência para um ser humano que não possui endereço? E cito a referência mais básica, primitiva.

- Ela agora se chama Débora, foi jogada fora dentro de uma caixa de papelão. Ração? Queremos sim. Só da Débora? Eu também quero aparecer na fotografia. Estamos prontas. Deixa eu ver... Ela não olha pra câmera, faz de conta que nem é com ela.


- Não sei...talvez a gente não esteja mais aqui. Quem sabe...um lugar onde ele não nos encontre. O homem que fala comigo...ele não para nunca, vive aqui (aponta pra cabeça), quero fugir dele, pra sempre. Como limpar o cérebro, fazer uma limpa geral, como? Nunca disse o nome, tem a cara de meu pai, mas é bem mais alto.



- O que ele costuma dizer? Que eu não existo... que eu não existo..., mas eu discordo, olha a Débora, olha como ela me lambe e balança o rabo, acho que pelo menos pra ela, eu existo.



- Não sei o que seria não fosse a Débora, não sei. Por favor, não chama ela de Debie, pelo amor de Deus! Tu tem algum trocado? Então compra um sanduíche pra mim!

Tranquei minha inutilidade dentro do carro, vidros fechados, chorei de raiva de mim mesmo. O retrovisor mostrava Julia sorridente e seu aceno de despedida... Pensei em Leandro, em Júlia, suspeito que lhes falte a consciência do que é viver, esqueceram o passado, duvidam do presente. O sim e o não são despertados tão somente nos momentos de frio e fome. Quem sabe de nós por inteiro? Mal o dia começou e me sinto mergulhado num impasse, o tubo de oxigênio tem seu limite.

Júlia bate na janela do carro:

- O homem está falando, está aqui (apontando pra cabeça), quer saber teu nome... Luís? Ele disse que tu tá mentindo. Não te preocupa, eu resolvo, mas como é mesmo teu nome?

Liguei o carro, antes de arrancar, usei o celular e marquei sessão extra com o psicanalista. O mundo nunca soube de mim, nem da Júlia, muito menos do Leandro, da.....

Luíz(s) Horácio


45 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page