O que é ser um “Homem com H”?
- zonanortejornalpoa
- 6 de jul.
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Sucesso de público (mais de 600 mil espectadores), a cinebiografia de Ney Matogrosso não é consensual na crítica, embora não consiga negar o protagonismo brilhante de Jesuíta Barbosa. As questões de comportamento e o lugar da carreira são focos de polêmicas. Mas o que realmente é incomodativo neste trabalho?
Uma crítica que observei em rede foi de escândalo com a promiscuidade revelada de Ney; outra, com a falta de destaque na trajetória de carreira dos “Secos & Molhados” ao trabalho solo.
A jornada artística do cantor sem dúvida é de uma ascendência de brilho notório, que não me parece desconsiderada no roteiro, mas traz a vida pessoal, o lado humano, os traumas de infância, a relação com Cazuza, que noutro trabalho não foi considerada, e um amor que sobrevive ao HIV.
Ora, no campo da sexualidade, na época de ditadura, o que pode ser visto por moralistas como “promiscuidade” (muito tolerada com os machos heterossexuais), para mim, se afigura a experimentações libertárias em grupos de amigos, que não eram de todo sem afeto.
Como dizia Lacan: “Só o amor pode conter o gozo, abrindo lugar ao desejo”. Isso é observável na obra, pois Ney Matogrosso sai do gozo experimental para viver um amor com cuidado e empatia, até o fim, pelo companheiro que não sobrevive à Aids, em tempos que ainda havia o estigma de “câncer gay” e não havia medicação que desse sobrevivência. Temos um momento de divisão do artista por estar feliz de não ter contraído, culpa e dor pela perda que se afigurava de seu amado, Marco de Maria (Bruno Montaleone).
O que mais me toca é justamente o que é sagrado à psicanálise: Ney não se arrepende de ser desejante! Sustenta sua voz contralto num coral, peita um pai militar que o batia desde de criança por perceber seus trejeitos afeminados, faz de seu rebolado um estilo, com performance, figurino e maquiagem peculiares.
Interessante é a leitura que ele, embora resista inicialmente, dá ao forró, “Homem com H”, do paraibano, Antônio Barras. Estimulado por Gonzaguinha, Ney descontrói o que o senso comum atribui a esse significante, trazendo uma postura de vanguarda hoje bem debatida no movimento Lgbt+.
Ser homem não passa pelo real de uma voz grossa, por andar estereotipado de macho. De novo, temos a reafirmação Lacaniana de que “Somos o que imaginamos ser”, não o que o Outro, os outros, nos determinam. Numa sociedade heteronormativa, binarista e preconceituosa, são bem vindos os homens como Ney, assim como os Homens trans, que não dependem do Real do Corpo, do biologicismo para reafirmarem seu gênero.
Jesuíta Barbosa faz um Ney Matogrosso intenso, deslumbrante e misericordioso com o próprio pai, Antônio (bem vivido pelo ator Rômulo Braga), que acaba reverenciando a genialidade e talento do filho, merecendo seu perdão (num desfecho de chorar!).
Ao Ney, não faltou o amor e a aceitação, mais comum nas mulheres, de sua conduta, pela mãe Beíta, sensivelmente interpretada por Hermila Guedes. E toda esta riqueza subjetiva, que constituiu o sujeito Ney Matogrosso, tem méritos altos sim: do romance de Júlio Maria, com uma inteligência e competência sensível do roteirista e diretor, Esmir Filho.
Oh, Ney, da tua idiossincrasia com a Parada Lgbt+ de São Paulo e o movimento que não te inseres diretamente, dizendo ser “a própria bandeira”, lamento a falta na Paulista, de teu corpo que envelhece cheio de vida e arte, sendo um modelo a todos nós!

Gaio Fontella (Psicólogo, Psicanalista, graduado e pós-graduado pela UFRGS, ativista Lgbt+, Idealizador e Diretor da Feira Baile da Diversidade e Fórum de empreendedorismo Lgbt+).




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